Hermética.

Eu sou uma farsa. Não sei escrever, não sei falar, não sei ler, não sei contar. Duvido até que saiba andar, ou mexer minhas mãos. Não sou verbo. Sempre fui adjetivo. De todos os verbos, o único que sou é pensar. Eu penso, mas ainda assim, mal. Penso demais e permaneço insuficiente. Meu único verbo me gera todos os adjetivos. Sou uma farsa porque finjo. Eu penso, e aprendi a fingir. Meu verbo aprendido. 

Eu finjo escrever, finjo falar, finjo ler, finjo contar, andar e mexer as mãos. Finjo saber quem sou e o que faço aqui. Finjo andar ocupada, finjo sentir e ouvir. Finjo ser. Nunca senti que algum dia fui alguma coisa. Só sentia tempo e tamanhos. No passado fui pequena, por exemplo. 

Aparentemente sou, mas basta conhecer um pouco mais para perceber que não passa de uma dublê. Sinto que sou dublê de minha própria vida - todos os dias atuo ser, até para mim mesma. Nesse exato segundo estou atuando escrever. Em um cenário: um quarto, cobertas, meu notebook, o silêncio. Apenas o barulho das teclas e do ar condicionado - minhas mãos gelam. 

É difícil atuar e não poder parar. É difícil ser dublê quando o ator nunca aparece. É difícil se perder em si em tamanha profundidade que não se sabe como voltar para superfície. Aprendi a nadar com oito anos, um garoto mais velho me ensinou. Demorei uns 3 dias para conseguir de fato nadar, depois disso, nunca mais o vi. Desaprendi a nadar em um segundo - bastou eu me olhar no reflexo da água. 

Me vi no espelho e não conseguia enxergar - não estava cega -, o espelho parecia estar com defeito. Eu observava fixamente mas só enxergava o reflexo do quarto - não havia face alguma. Eu não existo. Sei que ainda estou aqui porque penso e finjo. Minha dublê vive por mim. Não há profundidade alguma em mim ou no que eu escrevo - dentro de mim só se vê o oco. 

- Alô? Ela vai comparecer hoje?

- Desculpe, ela tirou férias fazem alguns anos... Não acho que ela volte.

- Tudo bem, contanto que você venha, poderemos prosseguir.

- Sabe, eu estava pensando... Vai ser assim pra sempre?

- Assim como?

- Sempre que tocar em minha pele vou sentir áspero? Sempre que falar eu vou conseguir ouvir eco? Sempre vou me sentir uma manteiga derretida dentro de um corpo? Sem ossos ou órgãos? Só engolindo e colocando para fora? Todos os dias? Até em meus recessos, em meus aniversários ou nas célebres festas de fim de ano? Não quero mais fingir. Às vezes não consigo dormir pensando em como deve ser, ser. Sabe? Arrancar a carcaça, me libertar. Ser quem nunca fui, quem nunca pude. Esquecer de toda essa farsa animada, de todo esse pão e circo da vida, de toda essa falta de humildade, e de todos esses inúmeros passos que dei para chegar até aqui. É injusto que ela possar não ser, e eu tenha que fingir para continuar aqui. A troco de quê? A que preço? Permita-me pedir demissão e desmanchar essa pele que me aprisiona. Ela arde tanto. Prometo que farei da forma mais honrosa que puder. Por favor. Suplico-te. 

- Hã? Alô? Perdão, a ligação falhou, pode repetir?

- Falhou?

- É, eu fingi ouvir tudo o que você tinha a dizer. Na verdade eu não me importo, então desliguei-me enquanto você, entediantemente, monologava sobre si. Sinto muito, tenho mais o que fazer. Tentei ser educado, mas você é apenas chata. Chata no sentido literal. Horizontal, achatada. Que pena que foi tão comprimida, tão moldada. De toda forma, tenha uma ótima noite. 

Pi, pi, pi.

Hermeticamente fui reduzida, e agora tudo o que me resta é esperar a chegada do último verbo.

Morrer. 



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